No dia 24 de Abril de 1974, um grupo de militares comandados por Otelo Saraiva de Carvalho instalou secretamente o posto de comando do movimento golpista no quartel da Pontinha, em Lisboa.
Às 22h 55m é transmitida a canção “E depois do Adeus”, de Paulo de Carvalho, pelos Emissores Associados de Lisboa. Este foi um dos sinais previamente combinados pelos golpistas e que despoletava a tomada de posições da primeira fase do golpe de estado.
O segundo sinal foi dado às 0h 20 m, quando foi transmitida a canção “Grândola Vila Morena“ de José Afonso pelo programa Limite da Rádio Renascença, que confirmava o golpe e marcava o início da operações. O locutor de serviço nessa emissão foi Leite de Vasconcelos, jornalista e poeta moçambicano.
in "Wikipedia"
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07h02 da manhã, toca o telefone. O vigilante de serviço na portaria não reconhece o número que chama através da central, mas pelo indicativo identifica-o como sendo de perto. Atende. Diz o nome da empresa e um expressivo bom dia, como habitualmente: -G.V., bom dia! Se faz favor?
Do outro lado ouve-se um pedido, quase uma ordem: - Pode-me passar à zona fria!?
Faz-se silêncio. São poucos segundos, mas parece ser muito mais até o vigilante falar novamente, como se do lado de lá não viesse som algum, voz alguma, nada: - G.V., bom dia! Se faz favor?
- Pode-me passar à zona fria!? - ouve-se do outro lado da linha, desta vez com mais arrogância.
- Primeiro, isto não é nenhum “teletransporte” e depois, bom dia também para si, muito obrigado! Vou passar a chamada ao departamento da zona fria, não garanto é que você consiga lá chegar deste modo!
Nazaré, final de uma tarde solarenga. O vento começa agora a soprar mais forte, refreando o calor que até aí permitira um bom dia de praia para alguns estudantes e turistas, apesar de estarmos ainda em Abril. É mais uma maneira de se gozar o bom tempo que esta Páscoa nos oferece.
Numa das rampas de acesso à praia, em frente da Praça Sousa Oliveira (esplanada), um rapaz com cerca de 18 anos brinca com um cão que apesar do seu porte físico ainda é bebé. O rapaz faz “trinta por uma linha” ao pobre animal, que mesmo assim vai rodopiando, dando ao rabo, mordendo a trela que não o prende num acto contínuo de reciprocidade.
Outro rapaz a rondar a mesma idade está de parte encostado ao corrimão metálico que ladeia uma das partes laterais da mesma rampa, e ri, ri muito. Diz qualquer coisa imperceptível para quem está mais afastado. O outro parece entender, ri também. Continua a fazer umas palhaçadas com o animal e até o rabo lhe puxa. Do outro lado da rampa um casalinho de namorados também da mesma idade observa tudo aquilo. O segundo por fim diz para o primeiro algo verdadeiramente engraçado, a pedir uma reflexão filosoficamente mais demorada, “Eu não gostava de ser o teu cão!”
Daí a pouco aproximo-me e pergunto, “qual é a raça dele?”; “é um perdigueiro”, risada geral porque o dono do animal afinal não acertou na raça. “É um Labrador”, diz o terceiro rapaz, o elemento masculino do par de namorados, e todos eles riem muito. Afinal o suposto “dono” do animal só estava a tomar conta dele. O verdadeiro dono não estava ali naquele momento. Coitado do cão!
Tonhe Caracol, chamado assim por ganhar a vida de Maio a Setembro na apanha de caracóis, não andava muito bem e o médico de família ordenou-lhe que fizesse um chek up, “uma p'rrada de exames e análzes”, dizia ele em tom de protesto e desabafo, “vai um gajo ao méd'c da famíla e ele ainda manda gastar uma pipa de massa p'a trazer estes papés todes, ah repá! Na chegava já o aumente que paguê p'a consulta(?)”.
Passadas três semanas, lá vai o Tonhe Caracol. Caminha ligeiro, de cabeça bem levantada, de mãos nos bolsos, de boné ligeiramente à banda, deixando mostrar toda a sua vasta e morena testa, com um bronzeado permanente de tanto sol apanhar (e não foi preciso ir à Corporación Dermoestética). Assobia qualquer coisa, que só ele provavelmente reconhece, ecoado pelo breu da noite. Leva debaixo do braço os exames que tanta dor de cabeça e trabalhão lhe deram, formando um grosso canudo preso com um elástico. É o primeiro a chegar à porta do centro de saúde e diz: “Primêres!”. Ali fica, sentado no banco de pedra corrido, encostado à parede do Centro de Saúde da Nazaré. Pensa em nada, dormita talvez.
Passados largos minutos, Manel Candil chega por sua vez, e diz: “Segundes”; “primêres”, retorquiu Tonhe Caracol quase simultâneamente, sem abrir os olhos, “q'horas são Manel?”; “São duas da matina, e tá a ficar uma zagania(*) q'até arrepia cabele”, respondeu o Manel Candil; “Zaganiiiiia!?... na sinte nada à Manel”, “Ohhh! É manera d'falar. Eu é que 'tou chê de fri e com errepis! Na vês que 'tou com um casaque q'até parece que tames em Dezembre. Até já fiz ingôd(**) e tude!”; “Olha sé a gripe das aves, ah repá! Questumas ir dar pão às gaivotas, já na sê... na te quere aqui ao pé d´mim. Chega p´ra lá, abernuncia cagalhão de gate!", disse Tonhe Caracol já com medo, enquanto se chegava mais para a ponta do banco.
Não falaram mais!... Dormitaram!... Tosse seca!... Espirro!
Quase pela manhã: “Tercêres” disse alguém; “primêres”; “segundes”. Dormitaram.
Pela manhã já havia consultas para mais de vinte. O médico só atende os primeiros 8 fora os outros!
Diziam mal do médico: que ia chegar atrasado porque era um bêbado, moina e que até fumava Charros.
Uma velhota que já o ouvira cantar no bar do 'Pé Leve' à frente do mar, perto de onde morava, dizia: “Uma tecáva nos tambores, e ele cantava, ma na' era cantar, parecia que 'tava a falar muite depressa. Aquile é um estroviade. Nem sê porqué que vem tanta gente p'ra ele!”
Meio dia. Por fim chega o Dr. Rafael, um médico na casa dos trinta anos e solteirinho da silva, mais conhecido por Dr. Rafa, o qual sabia não dever nada à fama adquirida, nos últimos tempos. Olheiras de palmo e meio, meio despenteado, e telefone colado à orelha direita desde que chegara com o carro (um bruta de um BM série 7), até entrar para o gabinete que servia de consultório. Na outra mão, a mala de médico com uma bata branca a tapá-la parcialmente, “enfermeira Rita, bom dia, mande entrar o primeiro se faz favor, estou com pressa”, disse para a enfermeira de serviço, continuando a falar ao telemóvel.
A enfermeira Rita, um vistão, diria mesmo, uma paisagem monumental com aquela farda vestida, um autêntico avião. Aquilo até fazia ganhar vida a um morto.
Tonhe Caracol era o “primêres” e entrou com o monte de análises e exames pedidos na consulta anterior. Por fim o médico desliga o telemóvel, “Bom dia Sr. António”; “Bom dia à Sô Doutor. Tão aqui as análeses todas qu'me pediu”; “Ora vamos lá ver isso então”. O homem olha para aquele monte de papéis durante uns minutos, vê e revê, e voltar a ver. Mede a pressão arterial ao Sr. Caracol. Escreve, escreve, passa receita e regista no ficheiro do cliente, vulgo doente. “Atão sô doutor... o qué q'eu tenhe?"; o médico levanta-se calmamente e estica os braços na horizontal,vira-os para fora unidos pelo entrançar dos dedos das duas mãos (espreguiça-se... porra, assim é mais fácil e curto. Esta mania das descrições!), e começa o espectáculo hip-hop:
“Não podes mais estar assim
nesse estado de demente
tens o cérebro dormente
e o corpo parece ausente.
A saída está ruim
tua mente está doente
o corpo não aguenta
o teu estado de demente.
Funcionas a carvão
mais lento não podes ser.
Estás a ir em vão???!
Assim não, assim não!
Vais correr, tomar ginseng
alteres praticar, o médico consultar
e um raio x efectuar.
Deixar o fumo é objectivo
e os molhos abandonar
o pão vais aliviar
a salada é que está a dar”
Faz uma pausa e fala devagar: “Tem o colestrol muito alto e vamos fazer mais uns exames porque tem aqui qualquer coisa na cabeça, percebeu Sr. António?”, disse já a acalmar daquele momento único do qual o Tonhe Caracol foi espectador privilegiado de primeira fila. O homem estava siderado nos olhos do médico e nem palavra disse. Passados poucos segundos levanta-se num foguete e desata a correr consultório fora, e depois direito à rua com os braços no ar gritando, “O méd'c tá tonte, tá tude tonte, tá drogade, tá drogade e disse qu'eu táva tonte”.
Digamos que há pessoas que são mal interpretadas e não ajudam muito a sua fama. Expõem a sua veia artística fora dos ambientes próprios e depois dá nisto.
Foi mais um caso de um médico marginalizado e olhado de lado pelos seus doentes e pela população em geral. Tem amigos e amigalhaços(***) e continua a cantar no bar do 'Pé Leve' enquanto é acompanhado às percussões (bateria) pela enfermeira Rita, ao melhor estilo do improvisado e muito urbano hip-hop.
(*)Diz-se quando faz vento, frio e chove.
(**)Modo de dizer que uma pessoa vomitou.
(***)Más companhias, companhias por interesse.